O que é leitura sensível e como ela pode ser importante para sua história

Foto por Houcine Ncib, via Unsplash


Olá escritores!

Talvez você já tenha ouvido falar sobre leitura de sensibilidade ou leitura sensível, e reconhece a importância que esse serviço tem para contribuir para a qualidade de um livro, assim como os outros serviços editorais (revisão, leitura crítica, diagramação e afins).  Porém, esse não é um tema tão comum a todos e pasmem, algumas pessoas enxergam isso como um ato de censura à escrita. Para trazer um pouco mais de clareza sobre esse assunto gostaríamos de falar um pouco sobre essa temática, mas antes de fazermos isso achamos necessário falar sobre o que é o movimento “Own Voices”.


Olhe para os livros que você possui ou já leu e enumere quantos deles foram escritos por:


  •        Homens (quantos deles são brancos e não-brancos?)
  •        Mulheres (quantas delas são brancas e não-brancas?)
  •        Pessoas LGBTQIA+
  •        Pessoas com algum tipo de deficiência 


Qual foi a resposta que você obteve? Provavelmente o resultado encontrado reflita um fato conhecido sobre o cânone literário ser famoso por ter obras de homens brancos (e héteros) em destaque. Com o crescimento do movimento #MeToo e #BlackLivesMatter, o #OwnVoices ganhou ainda mais espaço.


De maneira resumida o termo “Own Voices” foi cunhado pela escritora Corinne Duyvis e refere-se a trabalhos em que os autores e os personagens compartilham de uma identidade marginalizada semelhante. Assim como também é uma forma de amplificar a voz de escritores que estão inseridos nas minorias.



Exemplos de livros “Own Voices”




  • Formas reais de amar, de Lavínia Rocha, Olívia Pilar, Solaine Chioro e Val Alves: este livro reúne quatro escritoras não brancas contando as virtudes e desventuras de futuras herdeiras ao trono não brancas que, com muita sutileza, inteligência e solidariedade, foram criadas para serem grandes líderes.
  • Todas as cores do Natal, de Vitor Martins, Lucas Rocha, Bárbara Morais, Mareska e Alliah:  neste livro temos cinco escritores LGBTQIA+ narrando histórias sobre personagens LGBTQIA+ durante as festas de fim de ano.
  • Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie: a autora, assim como a protagonista da história também é imigrante nigeriana nos EUA.
  • Frank e o amor, de David Yoon: tanto Frank (protagonista) quanto David (autor) são de americanos com descendência asiática.  
  • O Sol também é uma estrela, de Nicola Yoon: assim como a protagonista, a autora também nasceu na Jamaica, mas cresceu nos EUA.


Há histórias que só a gente pode contar, porque existem situações que só a gente vivenciou, ainda que essa experiência seja similar a de outras pessoas. Ainda assim, há aquele momento que surge uma ideia de escrever sobre uma realidade diferente da nossa e não há nada de errado com isso desde que você faça uma pesquisa aprofundada do assunto e busque representar tudo de uma maneira respeitosa e o mais fiel possível da realidade.


Exemplo: Quantos filmes e séries você já assistiu onde eles representam o Brasil e os brasileiros de maneira errada ou estereotipada e se sentiu desconfortável com isso? Pois é, o mesmo acontece quando você lê uma história que tinha por objetivo gerar representatividade e trazer diversidade, mas que acaba apenas reforçando atitudes preconceituosas. E é para que situações como essa não ocorram que a leitura de sensibilidade se torna necessária.  


Lembrando que não devermos confundir representatividade com tokenismo, para saber mais sobre o assunto não deixe de conferir: Tokenismo: tudo o que você precisa saber e como ele pode ser problemático para a sua história .


Um exemplo do uso da leitura sensível é o livro Um milhão de pequenas coisas, da autora Jodi Picoult. No livro Picoult que é uma mulher branca narra a história de Ruth Jefferson uma enfermeira obstetra com mais de vinte anos de experiência em um hospital de Connecticut. Durante um de seus turnos, Ruth inicia exames de rotina em um recém-nascido, mas instantes depois é transferida para cuidar de outro paciente, pois os pais do bebê são supremacistas brancos e não querem que Ruth, que é negra, toque em seu filho. O hospital atende ao pedido deles, mas, no dia seguinte, o bebê sofre um problema cardíaco enquanto Ruth está sozinha no berçário. Ela obedece às ordens ou intervém? Ruth acaba hesitando antes de realizar os procedimentos de reanimação e, como resultado, é acusada de um crime grave. Kennedy McQuarrie, uma defensora pública branca, aceita seu caso, mas dá um conselho inesperado: ela insiste que mencionar raça no tribunal não é uma boa estratégia. Confusa com o conselho, Ruth tenta manter a vida o mais normal possível para sua família ― especialmente para seu filho adolescente ― quando o caso se torna sensação na mídia. À medida que o julgamento avança, Ruth e Kennedy devem ganhar a confiança uma da outra e perceber que o que lhes foi ensinado a vida toda sobre os outros ― e elas mesmas ― pode estar errado.


Às vezes até um livro “Own Voice” necessita de uma leitura sensível. Por exemplo, uma mulher branca, cis, bissexual, da região sul do país resolve escrever um livro que se passa na região onde ela vive e que é protagonizado por uma mulher negra, assexual do sudeste do país e uma mulher trans, branca e pansexual.  Ainda que ela retrate um cenário que seja familiar a ela, e tenha feito uma pesquisa bem detalhada, ela não tem como saber como é ser uma mulher negra assexual no Brasil nem uma mulher trans. Por isso é interessante sua obra passar por uma leitura por pessoas que se encaixam nessas realidades, para ver se a obra reflete o que se propõem.


Descrevendo de maneira bem simples, o trabalho do leitor sensível, antes de mais nada, é o de melhorar a qualidade literária de um livro, afastando o autor de retratos e clichês unidimensionais, o guiando em direção a uma representação mais autêntica e sensível das identidades ou experiências que estão fora da experiência vivida do autor. Deste modo, a leitura sensível é responsável por procurar incoerências nas falas, uso de palavras e termos que reforçam estereótipos e, claro, preconceitos linguísticos. É uma forma de garantir que exista representatividade na literatura, de um forma responsável, empática e coerente.

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